Lágrimas Doces

Retirei-me daquele lugar fúnebre e abafado. Não aguentava mais todos aqueles olhares tristes sobre mim. Tinha que esquecer tudo aquilo por, pelo menos, alguns minutos, espairecer. Fui até a sacada, sentei-me com os pés para fora, pendurados no ar sem que pudessem tocar no chão. Apoiei os braços em cima do parapeito, colocando minha cabeça em cima deles. Observei a chuva caindo. Era bem conveniente para esse dia. Embora fosse um momento triste, eu queria muita felicidade e festa. Não foi o que aconteceu. O que eu queria carregar como uma feliz lembrança havia se tornado uma lembrança que eu queria esquecer.
Observei a vegetação alta, as árvores e flores. Essa imagem da natureza me trazia paz. Foi por isso que escolhi esse lugar para fazer meu funeral ainda em vida. Todas aquelas plantas iriam nascer, crescer e morrer, assim como eu. Talvez não tão jovens, mas o ciclo continuava a se repetir sempre. A chuva que caía sobre elas era como uma bênção dos céus, a vida que lhes era dada com a condição de que existissem. Fechei os olhos, como se pudesse absorver aquela vida para mim, embora já estivesse conformada com meu prematuro fim. O som das gotas d’água caindo sobre as folhas era hipnotizante e formidável. O toque do molhado sobre a superfície lisa, enquanto ela escorria pelas nervuras delicadas e perfeitas da folha, parecia acariciá-la. A pequena lágrima precipitando na ponta verde, indo em direção ao solo marrom e encharcado. Eram como lágrimas de agradecimento à vida. Aquele solo duro e impenetrável que permitia às raízes seu suprimento e aos lençóis freáticos seus iguais.
O cheiro que a terra exalava ao contato com a água era único e inconfundível. Fazia com que eu me sentisse feliz, como se minha infância fosse devolvida a mim. Permitia que eu acreditasse que a vida seria eterna, que aquele ritual nunca terminaria. A vontade de andar descalça sobre o chão molhado e sob as lágrimas da vida se apoderou de mim, mas eu permiti que permanecesse apenas como desejo, assim eu manteria o suspense de como seria a sensação, podendo imaginá-la de mil formas diferentes. Estiquei minhas pernas até que a chuva pudesse banhá-las. Podia sentir cada célula viva do meu corpo e cada gota que as tocava. Esse momento era guardado como se uma vitalidade pudesse tomar conta de meu corpo e de minhas coordenações motoras. Queria pular, correr, abraçar, sorrir e alegrar, mas meus músculos não mexeram um centímetro. Continuei ali com todas essas sensações apenas para mim.
Logo coloquei a língua para fora da boca, permitindo que as lágrimas tocassem-na. Não eram salgadas como lágrimas, mas não eram lágrimas humanas e sim lágrimas da natureza. Tinham o mesmo gosto da vida, ou seja, nenhum, mas sempre havia a esperança de que a gota seguinte tivesse um gosto mais adocicado, mais apreciável, mas, uma atrás da outra, elas caíam sempre com o mesmo gosto ausente. Mesmo assim, eu permiti que elas caíssem ali durante alguns minutos, apreciando sua presença tão perto de mim, a vida tão perto como a morte estava.
Naquele momento de êxtase, bloqueei todos os outros sons à minha volta, ouvindo apenas a chuva caindo delicadamente sobre um mundo que não a merecia, levando a vida para os seres mais esquecidos. Ainda com os olhos fechados e descansando minha cabeça sobre meus braços, levantei-me, deixando o corpo inerte para trás, enquanto as gotas de chuva atravessavam-me, comprovando que ali já não tinha mais vida. Fui em direção à natureza, a única coisa que me preocupou durante a vida e que foi capaz de me consolar durante a doença. Agora seria meu último lar durante a morte.

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