Acordei com aqueles que
voam cantando. É incrível. Sempre tentei acordar antes deles, mas nunca
consegui. Nós sempre vamos dormir quando a bola brilhante desaparece, mas eles
sempre acordam antes de mim. Às vezes vou dormir um pouco depois, quando o alto
está mancado de preto e prata. Aquela grande bola prata, que de vez em quando
fica meio amarela e nem sempre é uma bola, fica me observando. Fico
envergonhada. Geralmente eu finjo que estou dormindo, mas mesmo assim ela me
observa. Talvez ela seja algum tipo de guardiã. Ela é tão linda, é bem capaz.
Ela nunca aparece quando o alto chora, ou talvez ele chore por que ela não
aparece. Se bem que uma vez ela não apareceu e o alto não chorou. No geral,
quando não a vejo no escuro vou dormir num lugar coberto, esperando pelas
lágrimas.
Ainda estava acordando
quando um de meus amigos me trouxe algumas frutas. Eu agradeci e fiz um carinho
em seus pêlos. Pergunto-me quando meus pêlos vão crescer como os dele. E o mais
estranho é que meus pêlos da cabeça são muito mais compridos que os da cabeça
dele. Comi as frutas. Uma delas tinha um bichinho dentro. Tirei-o de lá e
coloquei-o no chão para ele encontrar outra fruta. Levantei-me e fui até um
riacho. Mergulhei. A água estava gelada e o dia quente, me refrescando. Fiquei
ali um tempo até meus amigos aparecerem. Eles também entraram no riacho,
jogando água para todo lado. Um deles começou a perseguir um animal da água,
até que conseguiu pegá-lo, mas de tanto que ele se mexia, escapou por seus
dedos. Ele tentou pegá-lo com os pés, mas não conseguiu. Divertimos-nos só de
ver a luta entre eles.
Depois que saímos de lá,
fomos até as árvores. Pegamos frutas para comer enquanto ninguém via. Brincamos
entre as plantas e procuramos animais estranhos. Fomos até o topo das árvores e
competimos para ver quem gritava mais alto, assustando todos os animais que
voam que estavam por perto. Dependuramo-nos em galhos e cipós e depois corremos
pela floresta. Quando escureceu, estava com muito sono, mas mesmo assim eu
esperei para ver a bola prateada. Ela parecia mais perto do que nunca. Adormeci
observando-a, cheia de felicidade.
Tive um sonho estranho
naquela noite. Tudo estava muito quente, um calor insuportável. Tentei
mergulhar no riacho, mas a água estava tão quente quanto o ar. Vi muitos
animais correrem e voarem desesperados e então acordei. Dormia em cima de uma
poça de suor e o calor continuava igual ao do sonho. Os animais estavam tão
desesperados quanto no sonho e corriam sem rumo. Ainda era noite, mas o escuro
estava todo iluminado por línguas vermelhas que se lançavam sobre as árvores,
derrubando-as a fazendo-as gemerem como eu nunca tinha ouvido antes. Eu sabia
que a floresta sofria, mas não sabia o que acontecia.
Procurei pela bola
prateada, mas uma nuvem preta que saía das línguas vermelhas ocultava-na.
Haviam nos separado e, pela primeira vez, ela não podia me ajudar. Vi uma
árvore tombar. Seu movimento afastou, temporariamente, as nuvens negras e pude
ver minha guardiã iluminando, infeliz, o chão à minha frente. Vi que, quando a
árvore caiu, exibiu um buraco grande no chão que antes ocultava. Aproximei-me
e, desviando de todo aquele vermelho que fazia meu corpo esquentar ainda mais,
adentrei no buraco. Apesar do calor do lado de fora, aquele buraco estava
fresco. Parei de suar e vi que quem suava eram as paredes de terra. Acomodei-me
e fiquei observando as línguas tomando conta e acabando com tudo que entrava em
seu caminho.
Acordei com a luz em meu
rosto e estranhos sons que nunca havia ouvido antes. Olhando para o fora do
buraco, tudo estava preto e quase nada restara. A árvore que havia aberto o meu
esconderijo, que permaneceu intacto durante o caos, jazia morta. Chorei por
ela. Os sons que não conhecia pararam e, de repente, recomeçaram mais altos e
acelerados. Olhei para trás e vi duas criaturas gigantes vindo em minha
direção. O som saía de suas bocas. Sobre o corpo deles havia peles soltas como
eu nunca tinha visto antes. Eles andavam somente sobre suas patas de trás com
uma habilidade que eu e meus amigos não tínhamos. Correram em minha direção,
grunhindo cada vez mais alto e gesticulando. Pensei que iriam me machucar e me
encolhi no chão. Observei que eles traziam seus pés cobertos por outras peles.
Um deles me agarrou pelos braços e me obrigou a ficar somente com os pés no
chão, enquanto o outro tirou uma de suas peles e cobriu-me com ela. Quando ele
fez isso, pude ver seus braços, até agora cobertos, e percebi que eles eram
pelados como os meus, diferente dos braços peludos dos meus amigos.
Aproximei-me dele e passei a mão sobre a pele branca que estava em sua barriga.
Nunca tinha tocado em algo como aquilo. Percebi que essa pele também estava
solta e puxei-a para ver a barriga dele. Era pelada e tinha um buraco no meio
como a minha. Ele, devagar, puxou a pele branca para o lugar original enquanto
seu rosto enrubescia e ele sorria, retribuindo meu sorriso de felicidade e
reconhecimento. Comecei a tentar tirar as outras peles que lhe cobriam, mas ele
foi rápido ao segurar minha mão e impedir-me. O outro ria alto. Não entendi a
graça. Eu queria saber se os pêlos de seu corpo, como os meus, ainda não haviam
crescido o suficiente.
Ele passou meus braços por
dois buracos que havia na pele que me cobria, mas, mesmo assim, eu continuava
coberta. Ele fechou, com pequenas bolinhas, a pele e pude sentir o calor que
ela liberava e o vento que impedia de tocar no meu corpo. Senti-me confortável
ali. A estranha e semelhante criatura passou um de seus braços por baixo dos
meus e me conduziu junto com o outro. Eles comunicavam-se, mas eu não entendia
nada. Percebi que toda a floresta ao nosso redor estava destruída. Comecei a
chorar por ela e por pensar nos meus amigos, desejando que estivessem bem. O
outro me estendeu algo branco. Não sabia o que era aquilo e fiquei olhando para
ele. O que me ajudava estendeu a mão e pegou-o. Passou-o sob meus olhos,
enxugando minhas lágrimas e percebi que aquilo tinha a mesma textura da pele
branca que lhe cobria a barriga.
Fomos andando até chegar a
um lugar onde havia dois animais grandes e imponentes amarrados a árvores
mortas. Já tinha visto um desses antes. Ele estava parado, inclinado, bebendo
água no riacho. Ele me viu me aproximando, mas não fez nada. Passei a mão em
seu pêlo e ele reagiu apenas tremendo sua pele. Nunca tinha visto um animal que
mexesse sua pele sem mexer mais nenhuma parte do corpo. Ele parou de beber
água, virou a cabeça para mim, olhou-me nos olhos, parecia que sorria, e então
foi embora, andando elegantemente. Quando os reconheci como animais dóceis, me
desvencilhei dos braços que me levavam e fui à sua direção para fazer-lhes
carinho. Os outros pareciam felizes por estarmos nos dando bem.
Eles se aproximaram dos
animais e subiram em suas costas. Só então eu percebi que também havia peles
cobrindo as costas dos animais. Aquele que sempre me ajudava colocou suas mãos em
baixo dos meus braços e me elevou, colocando-me sentada a sua frente. Era
estranho estar em cima de outros animais sem que eles protestassem. Ele pegou
algo parecido com um cipó e, segurando, ambos os animais começaram a andar,
como se eles soubessem que os outros queriam isso.
Aos poucos, fui vendo
regiões que não tinham florestas, apenas várias plantas altas e iguais
enfileiradas. Era estranho ver aquilo, não parecia natural. Chegamos a um lugar
onde havia várias pedras, uma em cima da outra, formando um lugar fechado com
buracos para entrada e saída. Desejei ter uma coisa daquelas para os dias me
que o céu chora. Descemos dos animais e entramos no lugar. Lá havia outro que
se parecia conosco, mas era mais gordo, tinha os cabelos compridos como os meus
e as peles que usava não circundavam cada perna, como a dos outros, mas
circundando as duas juntas. Esse tinha em grande volume no peito que nem eu nem
os outros tínhamos. Esse pareceu surpreso e feliz por me ver. Os três se
comunicaram e esse me levou para outro lugar onde tirou a pele que me cobria e
me colocou num lugar cheio de água, mas não era um riacho, era diferente. Pegou
um pedaço de planta – ou pelo menos eu acho que era uma planta – e começou a
esfregar contra minha pele. Quando terminou, me entregou outra pele, dessa vez
era tão macia que quis ficar enrolada nela, mas não me permitiu. Em vez disso,
esfregou-a levemente sobre minha pele, enxugando toda a água. Cobriu-me com
algo parecido com o que usava, deixando minhas pernas juntas, ao invés de
separá-las como a dos outros. Passou um objeto pelos meus pêlos molhados que os
puxava, deixando minha cabeça dolorida. Fez algo com eles, acho que os enrolou,
deixando-os organizados e presos na parte de trás da minha cabeça. Quando
percebi, estava semelhante a esse. Imaginei que entre eles havia separação
entre fêmeas e machos, como na floresta, e que provavelmente nós éramos as
fêmeas e os outros, os machos.
Levaram-me para um lugar
parecido ao lugar onde estávamos, com muitas pedras empilhadas. Várias daquelas
coisas que pareciam proteções contra chuva se acumulavam e outros apareciam.
Comecei a perceber que na floresta não existia essa espécie de animais e eu
parecia pertencer a ela. Paramos em frente a um lugar que carregava u símbolo
no topo, um encontro de dois galhos. Entramos. Lá dentro havia muitos pedaços
de árvores, ou pelo menos é o que pareciam, onde alguns se sentavam e outros se
ajoelhavam, todos direcionados para o fundo do lugar, que tinha muitas
miniaturas da nossa espécie que não se mexiam. Uma delas estava presa em dois
galhos cruzados, como o que havia do lado de fora, e parecia sofrer. Um macho
veio em nossa direção, usando uma pele marrom e com um cipó amarrado ao seu
redor. Eles começaram a se comunicar e a me observar, então ele saiu conosco e
nos levou a outro lugar, de onde surgiu uma fêmea muito linda, toda cheia de
pedras e peles brilhantes e coloridas.
Ela fez sinal para eu
entrar, mas ninguém mais entrou. Virei-me e todos me olhavam com um olhar
carinhoso, que carregava outro sentimento que eu não conhecia. Aquele que me
ajudou desde o começo se aproximou e me abraçou. Esse sentimento que eu não
conhecia pareceu mais forte vindo dele. Todos se viraram e foram embora, me
deixando só com a outra que era tão glamorosa. Durante muito tempo vivi com
ela, morei em sua casa. Ela me ensinou a falar, a andar completamente reta, a
me vestir, a me comportar a mesa. Ensinou-me que as pessoas não são chamadas de
machos e fêmeas, mas sim de homens e mulheres. Tornei-me uma mulher tão bela
quanto ela, tão comportada e respeitada quanto ela. Já não era mais a menina
que cresceu e viveu na mata, completamente sozinha e sem referências. Agora eu
era gente.
- Depois de dois anos de
muito trabalho e esforço, eu transformei a boa selvagem em humana. – disse Miss
Turner, a minha “criadora” – Agora acho que você já está pronta para se casar.
Você já fez 15 anos e muitas garotas da sua idade já estão casadas.
- Mas, Miss Turner, há
mesmo essa necessidade? Na floresta os animais nem sempre se comprometem com
apenas um parceiro e são felizes assim. Eu também não posso ser assim?
- Você está louca, garota?
Quer ser mal falada por todos nessa cidade? Para você já não basta ser
conhecida como a garota da floresta? Será um privilégio para você e para seu
marido se você se casar.
- Mas eu não tenho
interesse por nenhum dos homens dessa cidade.
- E quem disse que você
deve se interessar? O homem é quem deve se interessar por você.
- Mas na natureza, ambos
devem se interessar. O macho tem que cortejar a fêmea para merecê-la.
- Olhe para mim. Você não
está mais na floresta. Aqui as coisas são diferentes. Aceite.
- E quanto àquele jovem? O
primeiro que vi?
- Aquele camponês caipira?
Você nem sabe o nome dele. E ele também não é bom o suficiente para te merecer.
Você é dama demais para aquele bruto.
- Não é você que diz que
até o mais belo diamante já foi bruto?
- Sim, mas isso se aplica a
você, e não a ele. Enfim, papo furado a parte, conheci um homem perfeito para
você. Ele só é 10 anos mais velho que você. Um ótimo rapaz, lindo e rico. Está
procurando uma noiva para poder dar um herdeiro para seu império. Acho que você
pode...
Não me interessava por ele.
Nem por ele nem por outro homem que a Miss Turner me apresentava. Em geral,
eram todos ricos e presunçosos que procuravam não uma esposa, mas uma mulher
para satisfazê-los e agradá-los e, no tempo certo, dar-lhes filhos. Nunca
consegui entender esse mundo que girava ao redor do dinheiro. O dinheiro gira
em torno de um casamento, que gira em torno de uma mulher submissa. Eu tinha os
meus princípios e não me sentia fazendo parte dessa raça gananciosa. Sentia-me
sendo parte apenas da natureza. No fundo, tinha orgulho de se “a boa selvagem”
de Miss Turner. Naquela noite, depois de conhecer muitos homens estupidamente
ricos e nojentos voltei para cada e esperei que minha mentora dormisse. Ela
nunca voltaria a me ver.
Deixei tudo o que tinha
para trás. Vesti aquele vestido simples, o primeiro que vesti, e saí para a
escuridão. A lua estava grande como na noite do incêndio. Refiz o caminho que
só tinha feito uma vez na vida, há dois anos, voltando para a vela fazenda
daquela simpática família que me encontrou. Cheguei à casa e comecei a
circundá-la, procurando a janela do quarto daquele diamante duro. Encontrei-o
dormindo pacificamente em sua cama. Ele não deveria ter muito mais que 18 anos.
Sentei em seu leito e observei-o dormir. Logo ele sentiu minha presença e
acordou. No começo se assustou, depois me implorou para que eu saísse, disse
que uma moça direita como eu não deveria estar no quarto de um homem a essa
hora da noite. Pensei que ele não tivesse me reconhecido, afinal, há apenas
dois anos ele ofereceu seu casaco para uma garota nua que não sabia do que se
envergonhar. Mas logo vi o reconhecimento em seus olhos. Ignorando seus
protestos, perguntei-lhe por que nunca tinha ido me visitar. Ele, assim como a
Miss Turner, disse que eu não lhe merecia, que eu era demais para ele.
Limitei-me a baixar os olhos, lamentando que ele também pensasse assim.
Mudei de assunto,
questionado sobre a noite do incêndio. Envergonhado, ele admitiu que tinha sido
culpa dele e de seu pai. Eles queimaram a mata para ampliar sua plantação.
Perguntei o que ocorrera com o lugar. Ele disse que, depois de me encontrar,
fez questão de preservar o terreno. Fazia muito tempo que não ia lá e não sabia
como estava agora. Pedi para que ele me levasse ao local. Fomos a cavalo, como
da última vez, eu fui sentada em sua frente. Quando chegamos, ele me ajudou a descer.
Boa parte da floresta havia se recuperado. Dava para ver que ela estava sendo
reabitada. Andei um pouco pelo local.
- Acho melhor você ir
embora. Daqui a pouco irá amanhecer e sua mãe ficará preocupada se você não
estiver em casa.
- Mas e você?
- Eu vou ficar por aqui.
Esse é meu verdadeiro lar. É a esse lugar que pertenço.
- Mas e a Miss Turner? Ela
ficará preocupada.
- Ela me entenderá. No
fundo, ela sempre soube que eu não pertenço à civilização.
Aproximei-me dele. Fiquei
na ponta dos pés descalços para alinhar nossos olhos. Dei um breve beijo em sua
boca e me dirigi para a floresta. Quando estava adentrando-a, tirei o vestido e
voltei ao meu estado natural. Ele gritou para mim:
- Espere! Eu ainda nem sei
por qual nome te chamam. – Me virei para responder.
- E não precisa saber. O
nome não faz de nós quem somos. Lembre-se de mim apenas como a garota que vivia
na floresta. Essa é quem eu sou.
Voltei a entrar na
floresta. Vi que ele recolheu meu vestido e partiu. O som dos cascos do cavalo
se afastando foi a última lembrança que guardei dele.
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